Crônica da quarentena
- Ana Claudia Magnani Delle Piagge
- 1 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Levanto e já coloco as ervas para ferver. Meu dia se inicia com um chá. Pois nada é melhor, para mim ao acordar, do que o aroma do alecrim invadindo a casa. Com uma caneca de chá fumegante e uma broinha me enrosco em uma poltrona, bebendo com vagareza, golinho a golinho. Sopro um pouquinho e, em meio a fumaça olho para o jardim.
Adoro chás e broinhas.
Minha casa é meu espaço de alquimia, local no qual emergem diversos elementos, misturados ao acaso, e que se refletem em meu olhar perdido no céu, na leitura de um livro ou no encontro das linhas e tecidos. Procuro poética na escrita, no silêncio, no olhar. Nas bonecas e nas forças que emergem delas.
Em momento de pandemia meu corpo se volta para o território, antes por mim abandonado, a minha casa. E nele, busco tecer novas poéticas manuais que tragam consolo para minha alma.
A casa é o local no qual me recolho, flutuando entre pensamentos, me encontrando no ato da criação. Gosto de estar comigo. Meu olfato se aguça com aromas, cheiros do tempo e das lembranças, enquanto o momento passa despercebido por mim.
Gosto de estar em casa, lugar no qual o tempo se manifesta em uma cadência lenta, sutil, dando espaço para outras formas de vivências, outras quietudes, distantes daquelas próprias a correria do dia a dia.
Em tempos de pandemia meu corpo se coloca em um estado de espera, de fechamento.
A quarentena me força a uma volta pra o interior da casa, para a minha intimidade, a uma entrega em uma relação que se estabelece com outro ritmo. Para viver o tempo da casa é preciso se entregar a ela por completo, ao desejo do que não finda, ao espaço sem limites. Pois, as paredes não oferecem resistência a uma mente que crie e invente. O telhado é insuficiente para reter a memória. As janelas transbordam a energia dos sonhos sonhados e as portas, mesmo cerradas, abrem espaço para inúmeras tessituras.
E me vejo entre linhas e bordados, memórias escritas e costuradas, e com bonecas, que como livros se tornam vivas, proporcionando escrita de novas histórias. A arte têxtil emerge no meu interior e no interior da casa. Trazendo a abundância dos sentimentos e das forças de permanências.
Silencio a loucura desenfreada, para mergulhar em um estado de quietude, de contemplação.
Para mim, as artes manuais emanam o aroma de um tempo que assume a lentidão e a paciência necessária aos processos. Dessa forma, eu e a casa mergulhamos em um profundo estado de contemplação, em uma vivência lenta do desejo e da possibilidade de estar. Exercendo a potência de permear as coisas, saindo da superficialidade para adentrar em um plano poético.
Tudo entremeado por chás e bolos.
Faço paradas na cozinha, ingressando em estados de proximidade com panelas e vasilhas, gerando alma em pratos bem cozidos, criando poesia com alimentos.
Roupas são lavadas, perfumadas e estendidas. O sol aquece e seca os tecidos. O vento os sacode e os mistura.
Panos correm pelo chão.
As cachorras se esticam e espreguiçam, buscando carinho e atenção.
A água corre molhando as plantas, o chão, as janelas.
Tudo transcorrendo em um estado de aproximação e distanciamento, entre eu e a casa, entre eu e as coisas, entre eu e os outros. Uma intimidade que abusa dos limites do sentir e explora as subjetividades de todas as corporeidades. Que não se limita a pele. Que extrapola todos os sentidos.
Nesse contexto as poéticas manuais se convertem em um diálogo com a intimidade pois passam a habitar, não somente o interior da minha casa como, também, o interior de meu corpo.
E, mesmo em momentos de turbulência, o silêncio emerge no espaço prazeroso da intimidade. E esse estado de silenciamento me possibilita uma profunda conexão e exploração da potência criadora existente em mim, ao contrário, da conexão perversa estabelecida com os outros através da tecnologia, que somente me oferece fragmentos de realidade.
A potência criadora existente em mim é imperfeita, pois emerge de meu cotidiano imperfeito, do tempo e do espaço que me possibilito ter. Porém é a possibilidade de conviver, aprender e apreciar toda a minha imperfeição, que exprime toda a beleza, que existe para além das minhas limitações.
A perfeição, para mim, é efêmera, uma ideia pré-concebida no passado, através de esquemas estereotipados, que já não existem mais. A imperfeição, ao contrário, emerge no momento, na minha relação com o presente, com o que tenho e ofereço ao agora.

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